Ocê gósdevinho? Um caipira e um enólogo degustando vinhos, crônica imperdível de Luiz Fernando Veríssimo

Tempo de leitura: 5 minutos

 

(*) Texto de Luiz Fernando Veríssimo, edição de Rogerio Ruschel

Em uma de suas ótimas crônicas o escritor brasileiro Luiz Fernando Veríssimo relata o encontro de um caipira e um enólogo em uma degustação de vinhos. Caipira (“hillbilly” em inglês), meu caro leitor, é o morador da área rural, matuto, inocente, ingênuo e pretensamente ignorante, como personificado pelo personagem de histórias e quadrinho Ferdinando (Li’l Abner em inglês), criado por Al Capp nos anos 1930, (na imagem acima, oferecendo flores para sua namorada Violeta Scragg) que morava em uma cidade ficticia chamada Dogpatch, no Kentucky, Estados Unidos (no Brasil chamada de Bejo Seco) – u seja, “no fim do mundo”. Outro personagem muito popular no Brasil que retrata o caipira é o Chico Bento (veja abaixo) , criado em 1961 pelo cartunista brasileiro Mauricio de Souza, também criador da Turma da Mônica.
In Vino Viajas tem leitores em 96 países e certamente muitos utlizam o Google Translator para entender o texto. Desta vez peço desculpas a eles porque vai ser difícil traduzir o “idioma caipirês” do texto. Explico: “caipirês” é o modo de falar interiorano do Brasil. A expressão “caipira” vem da lingua indigena tupi guarani (uma das grandes nações indígenas brasileiras) e quer dizer “cortador de mato”. Na França o caipira é chamado de “campagnard”, na Alemanha de “landlich”, na Espanha pode ser um “palurdo” ou “charro”, na Itália um “campagnolo: entendeu? E como uma contribuição chegada á pouco, de Peter Souza, atento leitor de Porto, Portugal, no seu país caipira é “caipirinha”…

 

O ator, diretor e produtor brasileiro Amácio Mazzaropi (acima) encarnou durante mais de duas décadas (32 filmes) um personagem baseado em Jeca Tatu (imagem abaixo), um ícone do caipira brasileiro, criação do talentoso escritor Monteiro Lobato.

 

Dito isso, vamos ao texto de Luis Fernando Veríssimo.
“- Hummm…    Hummm…      Hummm..
– Eca!!!
– Eca?! Quem falou eca?
– Fui eu, sô! O senhor num acha que esse vinho tá com um gostim estranho?
– Que é isso?! Ele lembra frutas secas adamascadas, com leve toque de trufas brancas, revelando um retrogosto persistente, mas sutil, que enevoa as papilas de lembranças tropicais atávicas…
– Putaquepariu sô! E o senhor cheirou isso tudo aí no copo ?!
– Claro! Sou um enólogo laureado. E o senhor?
– Cebesta, eu não! Sou isso não senhor !! Mas que isso aqui tá me cheirando iguarzinho à minha egüinha Gertrudes depois da chuva, lá isso tá!
– Ai, que heresia! Valei-me São Mouton Rothschild!
– O senhor me desculpe, mas eu vi o senhor sacudindo o copo e enfiando o narigão lá dentro. O senhor tá gripado, é?
– Não, meu amigo, são técnicas internacionais de degustação entende?  Caso queira, posso ser seu mestre na arte enológica. O senhor aprenderá como  segurar a garrafa, sacar a rolha, escolher a taça, deitar o vinho e, então…
– E intão moiá o biscoito, né? Tô fora, seu frutinha adamascada!
– O querido não entendeu. O que eu quero é introduzi-lo no..
– Mais num vai introduzi mais é nunca! Desafasta, coisa ruim!
– Calma! O senhor precisa conhecer nosso grupo de degustação. Hoje, por exemplo, vamos apreciar uns franceses jovens…
(Na foto abaixo, uma pequena contribuição gastronômica-cultural para os leitores não-brasileiros: um pouquinho da culinária caipira bem rústica.)

 

– Hã-hã… Eu sabia que tinha francês nessa história lazarenta…
– O senhor poderia começar com um Beaujolais!
– Num beijo lê, nem beijo lá! Eu sô é home, safardana!
– Então, que tal um mais encorpado?
– Óia lá, ocê tá brincano com fogo…
– Ou, então, um suave fresco!
– Seu moço, tome tento, que a minha mão já tá coçando de vontade de meter um tapa na sua cara desavergonhada!
– Já sei: iniciemos com um brut, curto e duro. O senhor vai gostar!
– Num vô não, fio de um cão! Mas num vô, messs! Num é questão de tamanho e firmeza, não, seu fióte de brabuleta. Meu negócio é outro, qui inté rima com brabuleta…
– Então, vejamos, que tal um aveludado e escorregadio?
– E que tal a mão no pédovido, hein, seu fióte de Belzebu?
– Pra que esse nervosismo todo? Já sei, o senhor prefere um duro e macio, acertei?
– Eu é qui vô acertá um tapão nas suas venta, cão sarnento!  Engulidô de rôia!
– Mole e redondo, com bouquet forte?
– Agora, ocê pulô o corguim! E é um… e é dois… e é treis! Num corre, não, fiodaputa! Vorta aqui que eu te arrebento, sua bicha fedorenta!…
O pintor José Ferraz Almeida Junior (um caipira nascido em Itu, interior de São Paulo, em 1850) retratou a vida e cultura dos caipiras; estas telas abaixo se chamam “Caipira picando fumo” (1893) e “O violeiro”, de 1899.

 

Sugestão de crônica de Carlos Eurico (Pink) Schlenker  querido leitor que prestigia este blog com sua leitura, a quem fazemos um brinde: tim-tim!, Pink!
A memória de AmácioMazzaropi está sendo preservada no Museu Mazzaropi – http://www.museumazzaropi.org.br/
(*) Luis Fernando Veríssimo é um escritor, jornalista, humorista e cronista brasileiro, filho do também escritor Érico Veríssimo – ambos gaúchos, região do Brasil que tem o maior consumo de vinho per capita do Brasil e que além disso é onde nasci. É o escritor que mais vende livros no Brasil. [Veja aqui uma Biografia de Luis Fernando Veríssimo]

 

8 Comentários


  1. Muito bom!!! Excelente crônica e que também vale na vida real para aquele que sempre gosta de aparecer na mesa com amigos que não entendem nada de vinho!

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  2. Viva,
    "… A expressão “caipira” vem da lingua indigena tupi guarani (uma das grandes nações indígenas brasileiras) e quer dizer "cortador de mato”. Na França o caipira é chamado de "campagnard", na Alemanha de "landlich", na Espanha pode ser um "palurdo" ou "charro", na Itália um "campagnolo: entendeu?.."

    Em Portugal é "Caipirinha".
    Excelente crónica.
    Vai uma caipirinha à base de Pirassununga 51 Gold??

    Cumprimentos
    Peter Sousa

    Responder

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