Vinho de açaí do Amapá foi confundido com vinho de uvas vitis viníferas em teste cego – será que vai assim para o mercado?

Tempo de leitura: 8 minutos

Por Rogerio Ruschel

Meu prezado amigo ou amiga, o açai, aquela frutinha roxa deliciosa de uma palmeira do bioma amazônico, consumida há centenas de anos como alimento popular no Amapá (e em toda a região da Amazônia) ganhou estudos técnicos, superou preconceitos e hoje é um produto de prestígio (e preço) global, sendo exportado para dezenas de países. Pois agora pode ser exportado como um vinho.

João Capibaribe, ex- senador e ex-governador do Amapá produz açai há muitos anos na sua empresa Flor de Samaúma e desenvolveu um produto alcoólico com a fermentação da polpa. Recentemente Capibaribe fez uma avaliação sensorial comandada pela equipe da Embrapa Agroindústria Tropical, em Fortaleza/CE, com uma das primeiras versões do seu fermentado de açai, que surpreendeu bebedores de vinho que o confundiram com castas europeias e atingiu a aceitabilidade mínima para um possível lançamento, que é de 74%.

Degustei duas formulações testadas pela Embrapa que me foram enviados pelo produtor. Gostei, parece mesmo um tempranillo. Veja a seguir uma entrevista que fiz com o pesquisador Gustavo Adolfo Saavedra Pinto, Chefe Geral da Embrapa Agroindústria Tropical, e na sequência, um artigo inédito do produtor João Capibaribe que mostra a identidade do produto com os amapaenses e certas percepções sobre o açai.

A pergunta que fica é: como este fermentado alimentício não pode ser chamado de vinho (porque só fermentado de uvas tem esse nome), mas neste momento deputados promovem aprovação de uma lei que muda a caracteriização do vinho para ser considerado “alimento” – o que o açai já é – como vai ser chamado o novo produto? Nem Capibaribe sabe…

Veja na sequência entrevista com o pesquisador da Embrapa e o artigo do ex-governador Capibaribe.

Rogerio Ruschel – A ideia de fazer um “vinho de açai” veio da lenda do Açai – de uma tribo da região onde hoje é Belém do Pará, do Cacique Itaki, que fermentou a fruta?

Gustavo Saavedra: Foi uma sugestão do produtor João Capiberibe. Ele sente que a internacionalização do açaí fez com que a maior parte da agregação de valor não fique na região. A idéia de fermentar a polpa é provar um conceito, que é o desenvolvimento de um fermentado equilibrado, mas que ao mesmo tempo seja capaz de desenvolver uma cadeia produtiva no Amapá capaz de fixar a agregação de valor no estado.

Rogerio Ruschel – O que falta para o “vinho de açai” ser considerado pronto para o mercado? Quais etapas e qual o tempo estimado para isso?

Gustavo Saavedra: Na avaliação sensorial realizada pela equipe da Embrapa Agroindústria Tropical, em Fortaleza/CE, uma das primeiras versões do fermentado de açaí atingiu a aceitabilidade mínima para um possível lançamento (74%). Em termos de qualidade do produto, pessoalmente acredito que as primeiras linhas de produto já estejam prontas. Mas ainda a equipe da empresa vem trabalhando no aprimoramento do produto. A próxima etapa é o registro da empresa e do produto junto aos diversos órgãos reguladores. Uma vez feito isso, o fermentado pode ser comercializado, pois até hoje ele é servido para amigos, entusiastas, e para formação de público consumidor.

Rogerio Ruschel – Quais os benefícios do novo produto do ponto de vista de saúde – e como é possivel compará-lo com vinhos de uva? 

Gustavo Saavedra: De certa forma é possível a comparação, mas deve ser feita com algum cuidado. Ambas as bebidas contam com a presença de flavonoides, proantocianidinas e outros compostos fenólicos muito associados a suas ações como antioxidantes, anti-inflamatórias e vasodilatadoras. Estas ações já estão muito bem documentadas para o vinho, e por analogia podemos inferir que os fermentados de açaí possuam as mesmas características. Contudo, os fermentados de açaí ainda são uma novidade, e por isso ainda não passaram por avaliações científicas, que comprovem de forma inequívoca os efeitos. Mas re-afirmo, que por analogia, os mesmos efeitos devem estar presentes, pois as bebidas são muito similares.

Teste sensorial do fermentado de açai

  • Na composição mineral, a bebida apresentou semelhança com fermentados de uvas Chardonnay.
  • Propriedades sensoriais e físico-químicas da bebida de açaí são muito parecidas às dos vinhos tintos de uva.
  • Amostra apresentou aceitação sensorial de 74%, passando o nível exigido para ser lançado no mercado.
  • Amostras apresentaram aroma de fruta e adstringência típica de vinhos secos.
  • A faixa de acidez do fermentado de açaí é a mesma dos vinhos feitos com as uvas Touriga Nacional, Tempranillo e Petit Verdot.

Rogerio Ruschel – Existe algum risco potencial de consumo do novo produto para a saúde?

Gustavo Saavedra: Da mesma forma que o vinho, em especial o consumo excessivo de álcool pode trazer problemas à saúde. Dessa forma vale a recomendação: beba com moderação.

Rogerio Ruschel – Como a expressão “vinho de açai” não poderá ser utilizada, existe alguma sugestão dos pesquisadores ou dos produtores sobre como denominar e posicionar este novo produto? Existe alguma denominação indígena para o Açai nesta região do Amapá?

Gustavo Saavedra: Não, a expressão “vinho de açaí” é legalmente protegida pelo Decreto 8.198, de 20 de fevereiro de 2014, que regulamenta a Lei 7.678, de 8 de novembro de 1988, que define em no inciso II do artigo 2o, que “vinho é a bebida obtida pela fermentação alcoólica do mosto simples da uva sã, fresca e madura”. O uso do termo vinho para uma bebida de açaí enfraquece o produto, pois o termo vinho vem de uma bebida europeia feita tradicionalmente de uva. Particularmente, acredito que deva ser estabelecido uma nova denominação para este produto, que expresse a ligação com sua origem amazônica.

Rogerio Ruschel – É possivel conhecer os resultados do teste CATA (check-all-that-apply)?

Gustavo Saavedra: Sim, creio ser possível. O relatório do estudo não traz nenhuma ressalva quanto a divulgação. Encaminharei o PDF do estudo, lembrando que ele é um primeiro trabalho feito com uma das primeiras versões do fermentado de açaí. Obviamente, solicito que o relatório não seja divulgado, uma vez que seus dados estão sendo utilizados para a escrita de artigo científico.

Rogerio Ruschel – Houve a participação técnica de enólogos ou sommeliers de vinho na pesquisa ou no projeto?

Gustavo Saavedra: Ainda não. Mas para as próximas versões do produto, a empresa pretende ter a presença de um enólogo.

Leia a seguir artigo inédito de João Capibaribe

O petróleo roxo da Amazônia

João Capiberibe*

O açaí já foi quase veneno! Sim, cresci ouvindo falar que comer manga e tomar açaí era morte certa. Ingerir bebida alcoólica depois de tomar açaí, nem pensar!

E tem mais: o açaí causava, (ou ainda causa?) acidez e má digestão e também deixava, (ou ainda deixa?) a boca roxa. Pense numa desqualificação sistemática! Ai daquele que saísse em defesa do açaí! Quem ousasse seria execrado como atrasado, contra o progresso.

Naqueles anos pretéritos o vinho de açaí, hoje chamado de polpa, amassado a mão, tornou-se popular na periferia de Macapá, porém, por ser comida de pobre, enfrentou forte resistência pra entrar na classe média, que por puro preconceito, disseminou todo tipo de fake news para evitar seu consumo. Mas não teve jeito, ao que pese o preconceito, o açaí venceu! Tornou-se global, quem diria! 

Ignorando o açaí e outras tantas espécies da nossa biodiversidade, danaram-se a introduzir coisas estranhas em nosso meio ambiente, fazendo do Amapá um cemitério de experiências econômicas fracassadas.  

No cerrado, plantaram milhares de hectares de pinus, gemelina e acacia mangium, deu errado. Também no cerrado, cubriram uma extensa área com dendê, o que aconteceu? Nada! Deu errado.

A última iniciativa “redentora”, cantada em prosa e verso por nossa elite política – diga-se de passagem, craque em inventar soluções milagrosas – consistia em queimar nossa floresta pra fazer carvão pra produzir ferro gusa. Uma insanidade que só não foi adiante graças a consciência ambiental do povo do Amapá, que com muita luta, impediu a loucura.  

O açaí faz a roda da fortuna girar, já ultrapassou a participação da pecuária na economia da região. O petróleo roxo da Amazônia movimenta hoje mais de dois bilhões de dólares por ano, e pasmem, no mercado global vai além dos vinte bilhões, ou seja, lá fora eles abocanham 90% da riqueza produzida pelo açaí.

Como se explica essa diferença abissal? Simples, seguimos o velho modelo colonial exportador de matéria prima barata, mandamos polpa de açaí (commodities), lá eles transformam em produto final e vendem seus derivados pelos olhos da cara para o mundo todo, inclusive aqui pra nós na Amazônia. Isto é de fácil comprovação, entre no google e digite Açaí 600, depois me conte o resultado.  

  • João Capiberibe é ex-governador, ex-senador do Amapá, e ativista pelo desenvolvimento humano e sustentável da Amazônia.

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